Estudo revela como a crise climática afeta as pessoas com deficiência
Não há mais dúvidas: as mudanças climáticas já são consideradas uma das maiores ameaças à saúde global. Mas o que até então se desconhecia é que existe uma população quase invisível nas discussões sobre suas consequências: as pessoas com deficiência (PcD). Uma revisão publicada recentemente na PLOS Global Public Health mapeou pela primeira vez as evidências sobre como o aquecimento global afeta o acesso dessas pessoas à água, ao saneamento e à higiene (englobados pela sigla WASH) em países de média e baixa renda. O panorama é alarmante.
Exclusão na emergência climática
Dezenas de estudos realizados realizados nas últimas duas décadas foram objeto da revisão. O diagnóstico não poderia ser mais claro: barreiras desproporcionais aguardam as PcD quando as secas, enchentes ou ciclones atingem suas comunidades. Enquanto governos e organismos internacionais discutem mitigação e adaptação climática em grande escala, pouca atenção é dada às necessidades específicas das PcD.
Na verdade, revelaram os pesquisadores, o problema se localiza na interseção entre desigualdade social, pobreza estrutural e falta de infraestrutura acessível, não se limitando à deficiência em si. Tomemos o caso das comunidades rurais. Fontes de água potável frequentemente ficam distantes, exigindo deslocamento físico complicado. Banheiros adaptados ou rampas de acesso dificilmente são encontrados em abrigos emergenciais durante inundações. Em políticas nacionais de adaptação climática, PcD sequer são mencionadas
O que os pesquisadores encontraram; e o que ainda falta encontrar
Uma escassez dramática de dados foi verificada pelos autores. A caracterizar a maioria dos estudos revisados, sua pequena escala. Poucos países da África e do Sudeste Asiático os concentram, sendo que quase nenhum deles acompanha efeitos de longo prazo. Há lacunas críticas na medição de como eventos climáticos extremos afetam as PcD em termos de seu acesso à água e ao saneamento.
Não se trata de um problema simplesmente acadêmico. A ausência de dados impede, seja o desenho ou o financiamento de políticas públicas. As PcD permanecem excluídas das estratégias de mitigação, do planejamento de infraestrutura e até mesmo das respostas humanitárias quando evidências robustas inexistem.
Sistemas de coleta de água de chuva instalados em escolas especiais, adaptações simples em banheiros comunitários, e programas de treinamento de agentes comunitários, ou seja, intervenções específicas em soluções pontuais, foi o que se encontrou na literatura. Nada disso com definição de escala ou sustentabilidade a longo prazo.
Água, dignidade e autonomia: o trinômio da inclusão
Para além da saúde física, o direito à dignidade e à autonomia é algo para o qual esta revisão chama atenção. Lavar-se, preparar alimentos, cuidar da higiene menstrual ou prevenir doenças infecciosas são coisas que revelam a centralidade do acesso à água e ao saneamento para a vida cotidiana. Diante da negativa ou mesmo dificuldade de tal acesso, as PcD são arrastadas para um ciclo de exclusão e dependência.
Mulheres com deficiência relatam ter que escolher entre beber menos água ou enfrentar trajetos perigosos até fontes distantes em comunidades afetadas pela seca. Banheiros improvisados tornam-se intransitáveis para cadeirantes em áreas alagadas. Como se necessidades especiais fossem um luxo, em situações de emergência, a prioridade costuma ser dada à “população geral”.
Os autores sustentam que o acesso universal a água, saneamento e higiene (WASH) deve ser considerado parte essencial da adaptação climática inclusiva, e não como um “beneficio social” ou complemento. Também argumentam que os programas precisam incorporar a participação ativa das PcD, desde o diagnóstico das necessidades até a implementação das soluções (“nada sobre nós sem nós).
Intervenções promissoras, mas ainda incipientes
Exceções que confirmam a regra, projetos comunitários em Bangladesh, Uganda e Nepal demonstram que grande impacto pode ser obtido com pequenas modificações no design de banheiros, poços e pontos de lavagem. Em alguns casos, a aceitação comunitária e a manutenção das estruturas foi assegurada através do envolvimento direto das PcD.
Contudo, o artigo ressalta que falta padronização, monitoramento e avaliação de impacto. A replicação das experiências em outras regiões fica prejudicada, visto que muitos projetos não documentam resultados, o que limita sua transposição para outras regiões. E não há evidências de integração sistemática entre políticas de WASH e políticas climáticas nacionais, apesar de iniciativas locais bem-sucedidas.
A nova face da vulnerabilidade e a desigualdade ambiental
É no âmbito das injustiças ambientais globais que o artigo de revisão insere a deficiência. Piores efeitos das mudanças climáticas são observados exatamente nos países de baixa e média renda, que menos contribuíram para as emissões de gases de efeito-estufa. É neles que as PcD, já de todo marginalizadas por barreiras sociais e econômicas, sofrem de modo desproporcional tais impactos.
Ao se tratar de justiça climática é importante reconhecer quem é deixado para trás nas respostas à crise. Para muito além da redução de carbono, o que se faz necessário é uma transformação institucional que perpasse os campos da assistência social, saúde pública, infraestrutura e direitos humanos , na visão dos autores.
Ciência e política com empatia
Sem acessibilidade universal, não há adaptação climática justa: esta é a principal mensagem do estudo. Assim, indicadores de deficiência devem ser incorporados em todos os sistemas de monitoramento climático e de saúde pública, bem como o financiamento de pesquisas interdisciplinares; além de se assegurar que as vozes das PcD se integrem na formulação de políticas globais, seja no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) ou na Organização Mundial da Saúde (OMS).
Uma mudança cultural também se faz necessária.E ela passa pela linguagem e pela percepção pública. Narrativas acerca de clima e deficiência não devem se resumir a falar de minorias mas sim discutir como sociedades inteiras se defrontam com o desafio de enfrentar riscos de forma equitativa. “Inclusão”, afirmam os autores, não é uma quimera, um ideal abstrato, mas uma questão prática de sobrevivência.
Em tempos de colapso climático, o direito à água
A relação entre clima, deficiência e WASH é uma fronteira negligenciada da saúde global, segundo o estudo. Sem políticas que conciliem infraestrutura resiliente, equidade social e participação comunitária, continuarão fora de alcance as metas de desenvolvimento sustentável .
Transformar conhecimento em ação é o desafio. Reconhecer que a vulnerabilidade não é destino biológico, mas construção social, e que a resposta à crise climática deve começar pelos que mais sofrem suas consequências são passos fundamentais para a justiça climática.
Para acessar a revisão publicada na PLOS Global Public Health, clique aqui.
Fonte: Fiocruz